terça-feira, 13 de outubro de 2009

Sobre tudo e sobre nada


Anna Bezerra,  avó materna

Minha loucura ou paixão, essa falta de salubridade é reflexo de minha avó. Diz minha mãe que quando mais jovem ela tinha os cabelos negros e lisos como os de Iracema, sua pela era firme e apesar do sol e dos esforços que a fome impunha ao corpo e a necessidade de sobreviver impõe à alma, ela tinha uma tez despreocupada. Dizem os médicos “ ela tem retardamento intelectual de nível moderado”; dizem isso pra justificar sua completa ignorância de quem ela seja ou do que faz aqui neste mundo. Mas nós temos um segredo comum, compartilhamos do mesmo olhar. O tempo que nos afasta funciona da mesma forma que o versejar que nos reúne. Dizem isto para justiçar suas ações; a forma independente como fala, brinca e se comunica. Não há necessidade de terceiros, ela só precisa de si mesma, mas gosta de minha irmã que sempre cuidou dela. Mas talvez se ela não tivesse aparecido e meu avô não tivesse morrido em 1997, eles viveriam o mesmo acordo íntimo.


Diz minha mãe que Seu Miguel Luiz, meu avô casou-se com ela por força do seqüestro. Certo dia ao caminhar pelas ruas da serra velha, ele a vira em sua casa. Vendo-lhe, de súbito engraçou-se da pessoa dela. Em outro momento passou por sua casa e viu que ela apanhava de seus pais e, quando a deixaram de canto, ele a tomou para si e levou pra sua casa. E lá casaram-se por desejo, não sei se comum, mas fato é que ele sempre cuidou dela e a respeitou. Não sei muito a respeito de meu avô materno, pois todos esses de que lhe falo hoje são de minha família materna. Não sei se era forte ou gordo, se ela bonito ou não. Sempre lhe tenho à memória a imagem do senhor forte e vigoroso que nos deu bala e pipocas na frente da padaria e que, em segredo, me entregou três pequenos corcéis que ele mesmo havia feito. Talvez fosse aqui, nesse exato momento, que nosso acordo foi fechado. Não lembro também de minha avó nesse episódio.

Hoje minha avó tem quase 70 anos. Não há mais o meu avô por perto, apenas a sua lembrança na saudade de minha mãe. Ela tem já os cabelos envoltos no prateado da lua, e se recolhe na fortaleza de seus brinquedos.